.senso de profundis.




"Ela tem mesmo gosto. Mau gosto, claro! Mas tem gosto."

.desassossego.




“O coração, se pudesse pensar, pararia.”
F. Pessoa (Livro do desassossego)


.e não há nada de mais genuíno que ser-se. coração. ter-se. não figurativamente. não objectivamente. eu tenho. tu tens. ouves o bater compassado em descompassos no peito. saltam lâminas ardentes que trespassam vistas embaciadas. vidros foscos. turvados pela razão em castrações do se. deve. foi. e na inocência de um gesto o olhar queda-se em nenhures. algures aí ou ali. em ti. em mim de reflexos no espelho por onde me esgueiro todas as manhãs. e fico. em olhares que vêem. figurativamente e subjectivamente. vêem. sem mentes e afins. adições de género e tempos gramaticais. há um desassossego na veracidade. e na sensibilidade. na inocência de se ser. íntegro.

.isto.

.apenas isto.


.odes do séc. XXI




.ultimamente cada vez mais tenho visto artigos e afins que são nada mais nada menos que odes da solidão, odes do solteirismo (se é que a palavra existe de todo). qual é a necessidade? confortar quem o é, por opção ou escolha? inevitavelmente aquele tipo de textos deixa-me com um travo amargo. honestamente a dita felicidade não passa por estar sozinho ou acompanhado. estar solteiro não é melhor que estar compromissado (outra que lexicamente não deve existir). estar com alguém, em compromisso ou não, não é necessariamente melhor que estar solteiro. desde sempre ouvi dizer-se - banalidades do senso-comum - que o equilíbrio é sempre a melhor opção. equilíbrio não é o assim assim, o mais ou menos ou nem sequer o mediano. é bom estar sozinho. é bom ter alguém. e é isto. uma sem sufocar a outra. o outro sem sufocar isto. ou aquilo. no meu tempo (frase tão bonita) não se afundavam em temas destes, sabia-se que existiam solteiros novos, velhos e assim assim, pessoas solitárias, pessoas populares sempre rodeadas de amigos. e pessoas dentre todas essas que punham fim à sua vida. e sabia-se que a tristeza de uns não era homogénea com a de outros. e que as alegrias dos outros nem sempre eram as nossas. e que a vida se fazia. sem chafurdar na vida de cada um. e a vida fazia-se de uma forma equilibrada, sem necessidade de apologismos ou odes ou de gritar aos sete céus que isto é melhor que aquilo. e sabia-se no entanto o certo. o errado. e fazia-se (ou tentava-se) o certo. com os outros. para os outros. connosco próprios. sozinho. com um amigo. dois três. acompanhado. com um dois três. e não eram eleitos nem odes disto daquilo daqueloutro. apenas era. assim. era-se. e aceitava-se. neste século XXI assiste-se a autênticos spams de odes. o século da ode. é este. e agora vou ali beber um chocolate quente enrolada na manta com um livro ao colo em frente à lareira com chet baker de fundo. e digo-o só porque parece bem, é coisa de gente erudita e que muitos também elevam a ode. e grito aos sete céus. assim em jeito de confissão. escrevo isto sozinha. há pouco falei com y. há umas horas fui beber café com X. e agora quero estar apenas comigo. mas também estive contigo. e pensei em estar com ele. mas amanhã. amanhã também é dia. agora vou. no silêncio das palavras. de instrumentais a aquecer a sala. saborear a noite. sem odes. nem pílulas do esquecimento. nem aditivos. amanhã será igual. com. sem. porque o que mais importa é o equilíbrio.

.do amor.


photo daqui


.há livros que quero ter comigo. saber que estão lá. cá. não necessariamente comigo mas comigo. por perto. assim uma espécie de relação de profunda amizade. quase amuleto. quase amor. os que tenho. esses poucos especiais. irão para onde for. os que não tenho. ainda. quero ter. vou pedir ao Pai Natal. vou pedir a mim mesma. destes destaco Anjo Mudo do Al Berto, IQ84 do Haruki Murakami, Do Mal o Menos do Pedro Paixão. Fui deixá-lo hoje à biblioteca. despedi-me com um até já. custou-me. despedir-me. e já lá está o Anjo Mudo esquecido à espera que o vá buscar para um café. noite dentro. tardes ao pôr-do-sol. estes são os amigos distantes. mas amigos. como amuletos. e esta ligação à palavra morta de uns. questiono-me. apego. de quem apregoa desapego. mas este último é quase utopia. não existe por inteiro. e assim sendo. sussurro orgulhosamente: há livros que me são. autores que me são. são parte de mim. e quero-os comigo. vá para onde for. ou não vá. e Lobo Antunes, Babilónia. e Pessoa, a Tabacaria. e Jim Morrison, Daqui Ninguém Sai Vivo. e Exupéry, o Princepezinho. há livros que tenho comigo. há livros que quero ter comigo. não necessariamente comigo mas comigo. não quases. mas parte de. mim. 

.sorri...

...quando um desconhecido passa por nós, nos olha com encantamento, sorri, cumprimenta. e segue. sendo esta última parte importante. a não intenção. não invasão. apenas a simpatia. a empatia. porque algo o fez sorrir. porque algo... sorri. e afinal ainda vale a pena acreditar. na humanidade. nem tudo está perdido. nem tudo. mas tirando tudo o resto. o mundo até é um lugar porreiro.

.revisitações.




"Há pessoas que, ainda que pretendam ocultá-lo, perseguem um fim distinto das outras. A sua atitude perante a vida denuncia-os." 
L. Tolstoi

.silêncios.


.a luz alaranjada. é noite. fim de tarde de inverno. naquela escola de Seia lembro-me de nós. não me recordo dos traços do teu rosto. já não. e queria. queria tanto. eras mais alto que eu. magro. pálido. lembro as ligaduras nas mãos. e o sorriso. desfocado. o amor com que falavas da Inês. da pequena Inês. sempre achei que era por isso que me eras mais próximo. ou talvez não. mas eras. e o cimento na noite iluminado pelos candeeiros luz laranja naquela noite fria na serra são intemporais. a conversa. tu sem razões para viver. dizias. ou a única razão. morrer. eu sem entender. a tentar resgatar-te. nessa noite. o abismo. mas voltámos. um dia. manhã. faltaste. entreolhamo-nos com preocupação. esperámos. te. desde esse dia. manhã. não voltaste a te sentar ao meu lado. a palidez eternizou-se noutros tons. tu deitado. finalmente em paz como querias. será que era isso que querias? nunca entendi. não te entendi. nunca esqueci. não te esqueci. não voltei a entrar num cemitério. nem em funerais. não voltei a ouvir a terra a cair. o som compacto da terra. e os soluços de morte. da ausência. mas era nova. tão novos éramos. e tantos anos faltavam. assim quero crer. à distância de 20 anos. abraço-te uma última vez. outra vez.
Até sempre Marcos.