.rotinas.

RECLUSO

Certo podes estar
de que não serás lembrado
senão pelo que não fizeste
porque tudo o que foi feito foi em vão

Se alguém te disser o contrário
manda-o à merda
e vai com esse de mão dada
Na merda limpos banhos toma quem da vida mais não espera
do que morte e desespero

A todos é merecido o esquecimento
mesmo que disso nada saibamos
Andamos a esmo na vida como o vento na terra
Determinamos apenas quem por nós fica
a pensar no que não fizemos
no que não dissemos
e nem isso supomos

Pela cabeça de ninguém passa um pensamento que seja
onde caibam nossas angústias
A vida é ilegível
vive-se de vivê-la
depois apaga-se no silêncio da página branca

Os homens são perdas concentradas em si mesmas
anquilosadas veias de ternura
dizem tudo ao inverso do que deviam
e fazem sempre o oposto do que dizem
Mas lamentos tais não roubam o sono ao amor
cujas preocupações são tão ou mais banais
do que estes dós da dor
que é estar uma vida inteira perdido
algures entre o defeito e a virtude
de sofrer acompanhado
a angústia das listas de compras
das idas ao supermercado
das prestações em falta
dos nós domésticos
e suas amáveis traições

Nenhum bailarino se forma
a fingir que sabe dançar

Quem quer que respire pode constatar
o peso destas matérias nos pulmões
O médico receita bombas
ignorando a mais velha das medicinas:
só explosões de liberdade podem tratar os reclusos da vidinha

O mal está em esperar dos outros o que eles não são
exigir-lhes Carnaval quando só têm Verão
e festa onde há funeral
Pudesse ser tudo apenas como é
nenhum poema se escreveria
Seríamos saudáveis
                                perfeitos
                                              dicionários abertos de alegria

De Hmbf, retirado daqui